quarta-feira, 23 de março de 2011

Eu vou partir

A verdade é que resolvi pegar todas as nossas fotos, todas as cartas, todos os textos encharcados de sonhos e promessas e colocá-los em uma caixinha azul bordada com a letra R. Vou cavar um buraco bem fundo e enterrá-la. Vou pegar um desses gravetos tortos que ficam espalhados pelo chão e fazer sobre esta terra seca e avermelhada um X. Só por diversão. Só para saber que ali guardei um pouquinho de mim, um pouquinho de nós. E então vou fazer as minhas malas. Talvez apanhe as roupas secas no varal, um bloquinho verde e um lápis, mas nenhuma borracha, nenhuma lembrança, nenhum medo, nenhuma nostalgia. E vou sair por ai. Vou sair, porque minha alma tem dessas de seguir. De seguir para lugar algum, para ver o por do sol se ocultar no horizonte, para respirar o ar das montanhas, para mergulhar nas águas salgadas dos mares e para escutar o tilintar das águas doces das cachoeiras batendo sobre as pedras. Não te peço para me esperar, porque eu vou e não sei se volto.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Aquele olhar

Hoje eu olhei no fundo dos seus olhos pela manha. Você tomava seu habitual café com leite. Seu olhar vagava exausto. Passava sobre as prateleiras, sobre o sofá vermelho da sala, sobre as persianas da janela, que balançavam suavemente com o tilintar do vento. E então, foi inevitável. Seu olhar se cruzou com o meu. Talvez por menos de um minuto, mas foi um dos minutos mais longos da minha vida. Os segundos iam se arrastando separados uns dos outros por uma eternidade. Até que você se virou. Se virou como quem esta cansado de discutir, cansado de se decepcionar. Eu fiquei paralisada, tentando buscar na minha mente palavras para te dizer o quanto eu te amo.
Mas quando eu arriscava dizer alguma coisa, as palavras evaporavam da minha boca. E depois condensavam deixando o ar irrespirável, quase sólido. O silêncio era desconfortante. Era um silencio preenchido por um turbilhão de pensamentos inacabados que faziam um intercambio entre a minha cabeça e a sua. Iam e voltavam. Iam e voltavam. Até que um soluço quebrou o fluxo dos pensamentos. Eu desmoronava em lágrimas. E então você me olhou preocupado. Aquele olhar de pai. Aquele olhar de quem perdoa. Aquele olhar de quem ama.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Nós éramos


Nós éramos feito carne e unha
Meia e sapato
Nome e alcunha
Bife e batata

Até que nossas vidas mudaram
Ela passou a usar sandália de salto
Virou doutora
Vegetariana

Nós paramos de combinar
Nossa amizade parou de funcionar
Assim como uma caneta que perde a tinta
Falha,
Funciona,
Falha.

Assim como a meia que fura
Como a alcunha que muda
Como a batata que acaba
É a vida que nos separa.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Lá vai o trem, carregado de muitas saudades

Estava ali sentada na estação ferroviária. Levava comigo uma mala azul marinho, um pouco desbotada pelo uso excessivo. Dentro da mala algumas roupas de uso diário, pares de meia, algumas fotografias amareladas, e meu bom e velho livro. A mala estava cheia. Como se eu fosse ir para nunca mais voltar. O problema de quem vai e não volta é que a saudade dilacera no peito, queima em chamas e deixa apenas as cinzas. Mas eu havia chegado à conclusão que a saudade era melhor do que caminhar vazio. Então eu entrei no trem. Destino: Vitória. Sem grandes motivos, sem grandes objetivos. Confesso, que achava isso ótimo. As melhores viagens são as que carregamos as menores expectativas. A mala estava cheia, mas o coração vazio. Porém, eram tantos corações naquele trem que, estranhamente, senti o meu mais preenchido. Preenchido pelas historias que vagavam a minha mente. Imaginava porque aquelas pessoas estavam sentadas ali. Olhava se a mala estava cheia e pensava na possibilidade do coração estar vazio. E então o tempo foi passando e eu fui olhando as malas.  Até que me cansei e comecei a olhar pela janela. Aquela paisagem me trazia uma paz tão grande que eu queria poder dividi La com os outros passageiros. Infelizmente, os dois passageiros que estavam sentados perto de mim pareciam muito compenetrados nos seus próprios pensamentos. Então  contentei me por tirar o meu óculos e o meu livro da mala. Abri a janela, o vento soprava os meus cabelos, comecei a ler o livro. Comecei a viajar na estrada e nas letras. A mala tinha esvaziado um pouco e o coração certamente estava mais cheio.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Um jazz

Era uma agradável noite de domingo. Ela estava ali sentada no Café com Letras, escutava um jazz. Não sabia ao certo se era Rafael Martini ou Vagner Faria. Mas, de fato, isso não importava muito, aquele som percorria o espaço e chegava aos seus ouvidos, agradando-os de uma maneira que nem ela mesmo sabia ser possível. Ela reparava em um casal de namorados sentados na mesa ao lado. A menina era ruiva e vestia uma blusa dos Beatles. Ela parecia se divertir brincando com os palitos da mesa. Quebrava- os em inúmeros pedaços e depois montava um coração de pedaços de palitos. O homem era moreno e vestia uma camisa xadrez, a barba estava mal feita. Passava as mãos sobre os cabelos da menina tentando desembaraçar aqueles cachos ruivos. Era um casal bonito.
 Ela abriu o cardápio, leu e releu inúmeras vezes aquelas páginas um pouco amareladas. Não conseguia encontrar nenhuma bebida que lhe desse vontade de experimentar. Resolveu optar pelo bom e velho Martini. Era domingo, não deveria estar bebendo, teria que acordar cedo no dia seguinte. Mas aquele ambiente era tão agradável, a música era tão suave, que não conseguiu dispensar uma boa dose de bebida. Se distraiu tanto com o casal da mesa ao lado, com a acústica do lugar e com o seu copo de Martini que nem reparou que ele estava bem atrás dela, esperando ela sair daquele universo paralelo que a tinha envolvido. Quando se virou, o viu. E foi nesse momento que seu coração sobressaltou-se. Seu coração batia nos ouvidos já, a música foi sumindo e aquele sorriso encantador a contagiou de tal forma que ela não conseguiu dizer uma única palavra. Então ele sussurou : dança comigo? Ela se levantou, não precisava dizer nada, seus olhos nunca falaram tão bem por ela. Eles saíram do café e dançaram na rua mesmo, qualquer lugar seria ótimo. Dançaram por 30 minutos, talvez por uma hora, talvez a noite toda. Ela havia esquecido que amanha era segunda feira. Ela havia perdido a noção do tempo. Ela havia se apaixonado.